Fonética e Fonologia no PBMIH

Quando planejamos uma aula, às vezes não conseguimos prever um rumo que ela acaba tomando, mas que pode ser muito instigante. Hoje foi assim: os meninos prepararam uma aula sobre apresentações pessoais e que envolvia tarefas como informar e soletrar nome, informar número de documentos, declarar endereço de residência, informar profissão e por aí afora.

Era esse o rumo que a aula seguia, até que uma das migrantes venezuelanas fez daquelas perguntas que qualquer professor vibra ao ouvir, porque a pergunta revela não só o interesse do aluno pela aula, mas também a sua perspicácia sobre o objeto de estudo. Foi assim que enveredamos por uma aula de fonética, fonologia e convenções de escrita: tudo motivado pela percepção aguçada dessa aluna sobre a língua que ela ouve diariamente, neste país onde escolheu viver.

A explicação sobre a diferença entre grafia e pronúncia da palavra “advogado” foi o gatilho para que a aluna nos perguntasse sobre a razão da pronúncia [d͡ʒ] nessa palavra. Ela se dava conta de que esse som, presente também no início de palavras como “dica”, é diferente dos sons consonantais de uma palavra como “dedo” e queria saber se existiria alguma “regra” que possibilitasse prever quando se tem uma pronúncia ou outra.

Foi assim que enveredamos pela fonética e pela fonologia… Sim, existe uma regra: /d/ pode ser pronunciado como [d͡ʒ] em vários registros do PB, como o falado em Curitiba, mas isso só acontece se a consoante é seguida pela vogal /i/. Se a consoante é seguida por quaisquer outras das seis vogais que temos, então a pronúncia é [d], como em “dedo”. Obviamente eu estendi a observação para a consoante /t/, cuja pronúncia segue o mesmo princípio: em vários registros do PB, a consoante é pronunciada [t͡ʃ] quando antecede /i/, a exemplo do que acontece com a primeira consoante da palavra “tipo”, mas é pronunciada como [t] nas duas ocorrências da palavra “tato”. E, apesar de termos [t͡ʃ], a letra que usamos para escrever esse som e o som [t] é exatamente a mesma, <t>. Caso análogo para os sons [d͡ʒ] e [d], escritos, ambos, com a letra <d>.

Ainda pontuei uma diferença entre PB e espanhol: nesta língua, [t͡ʃ] e [t] são distintivos, como em [‘t͡ʃa.ko] e [‘ta.ko], ou seja, a troca de um som pelo outro gera palavras com sentidos diferentes na língua. Mas em PB não é assim: [‘t͡ʃi.ɐ] e [‘ti.ɐ] têm exatamente o mesmo sentido.

E acrescentei que [d͡ʒ] e [t͡ʃ] podem acontecer em palavras como “duende” ou “noite”, sempre que usamos, no final da palavra, uma vogal cuja pronúncia se aproxima mais de /i/ do que de /e/.

Motivados pelos exemplos que eu anotei na lousa para ilustrar a pronúncia [t], [d], como “tia”, “toca”, “tato” “tolo”, “túnel”, “dia”, “dedo”, “décimo”, “dado”, os migrantes queriam saber mais. Afinal, como assim temos “toca” e “tolo”, se a letra que usamos para escrever a vogal seguinte a <t> é a mesma?

Essa pergunta motivou toda uma explicação sobre a falta de correspondência biunívoca entre escrita e fala e teve um desdobramento: a abordagem dos graus de abertura das vogais do português.

A explicação começou pela observação de que a letra <o> escreve três vogais diferentes: ela escreve uma mesma vogal, [o], nas duas ocorrências da palavra “vovô”, mas escreve uma segunda vogal, [ɔ], em “toca”, e uma terceira vogal, [ʊ], no final da palavra “ovo”.

Eu não ensinei a eles os símbolos do Alfabeto Fonético Internacional. Não existe razão para isso. Mas combinamos que, para marcar a diferença entre as três vogais, anotaríamos [o] como <ô>; [ɔ] como <ó>; [ʊ] como <O>. Estratégias do tempo em que eu tinha que ensinar máquina a falar e tinha que lidar apenas com os recursos de ortografia, que era o que a máquina conseguia processar.

Inevitável, nessa altura da aula, “mostrar” aos migrantes, sobretudo os hispanofalantes, que existe diferença entre vogais baseada no grau de abertura da mandíbula. Então, mão encostada na mandíbula, pronunciei várias vezes as vogais [o] e [ɔ], de modo que eles pudessem ver que a minha mão descia cada vez que eu pronunciava [ɔ]. Na sequência, a contextualização, focalizando o fato de que as duas vogais promovem diferença de sentido, ou de gênero, ou de classe gramatical no português, como em “avô/avó”; “coro (substantivo)/coro (verbo)”.

E como uma coisa puxa a outra… O PB tem “toca” com vogal aberta e com vogal fechada, certo? Essa pergunta, vinda de uma aluna angolana, levou à explicação de que escrevemos “touca”, mas podemos não falar o ditongo, pronunciando apenas uma vogal.

Voltamos, então, às vogais fechadas e abertas, mas as frontais, para explicar para a turma que, de modo análogo à letra <o>, a letra <e> escreve três sons: [e], como em “você”, [ɛ], como em “pele”, [I], como no final dessa mesma palavra, ou como no final da palavra “doce”. Combinamos diferenciar as três vogais anotando-as <ê>, para [e]; <é>, para [ɛ]; <E> para [I]. Novamente, fizemos o exercício de colocar a mão encostada à mandíbula e pedimos que os alunos fizessem o mesmo, para verem a diferença entre a articulação das vogais. Noções de fonética articulatória conjugadas a noções de fonologia, que vêm pela observação de que também [e] e [ɛ] promovem distinção de sentido, ou de classe gramatical no português.

Já que o ponto era distinção de sentido, e já que um dos exemplos citados para ilustrar o fato de que o grafema <e> anota três sons era “pele”, contrastei essa palavra com “Pelé”. E, então, os alunos haitianos se dão conta de que existe algo além da qualidade da vogal e que promove distinção de sentido entre as palavras. Como, no crioulo haitiano, o acento lexical recai sobre a última sílaba, por herança do francês, os haitianos têm dificuldade em perceber o acento lexical do PB. Lá vamos nós treinar percepção auditiva, auxiliados pela modalidade da fala e acompanhando, com a mão, aumento e diminuição de intensidade de alguns pares de palavras, a exemplo desse, ou a exemplo de “pronúncia (substantivo)/pronuncia (verbo)”.

Tantos desdobramentos motivados por uma pergunta aparentemente – apenas aparentemente – boba nos levaram longe. É claro que esses pontos terão de ser revistos e tenho inclusive pensado em retomar o método para ensino de acento lexical que elaborei em 2015. Esta estratégia, porém, precisa ser melhor avaliada, porque agora não temos só haitianos em sala e, para os demais alunos, essa dificuldade específica dos haitianos não se coloca. Desafios… Assim como tem sido, a cada sábado, o code switching.

Na última aula, a aluna venezuelana que deu o mote para o redirecionamento da aula começou a pergunta querendo saber se eu preferia que ela expressasse a dúvida em inglês ou em espanhol. Tanto faz, afinal. E assim vamos: a mesma explicação acontece, frequentemente, em português, inglês, espanhol. Às vezes em francês, porque o que eu sei de crioulo haitiano não é suficiente para toda uma explicação. No final da aula eu tenho de me lembrar qual é a língua que eu falo (!). Brincadeira à parte, a utilização de outras línguas em sala se mostrou necessária. A princípio, eu achava que só deveria falar português. Entretanto, em alguns momentos o auxílio de línguas que servem como “moeda de troca” possibilita que os alunos compreendam melhor uma explicação, porque tantas procedências distintas, tanta diversidade sócio-cultural, são um enorme desafio, compensado pela avidez com que querem aprender e a curiosidade insistente com que buscam explicação para o funcionamento da língua em que se encontram imersos.

Para terminar: embora eu comente que tivemos uma aula de fonética e fonologia, em momento algum eu usei termos técnicos de uma área ou de outra. Esse é o conhecimento que o professor detém e traduz para os alunos, de forma a torná-lo inteligível. Por isso, não ensinei o Alfabeto Fonético Internacional. Só usei um símbolo do IPA quando eu quis marcar a diferença entre o som inicial de “tipo” e “toca”. Nesse caso, meu único objetivo era lançar mão de notação diferente para destacar a pronúncia também diferente.

Também não usei termos como “vogal frontal meio-aberta” para me referir a [e]. Não faria qualquer sentido para os alunos, assim como não faria sentido algum eu mencionar fonemas e alofones ou recorrer a termos da gramática normativa como “oxítonas” e “paroxítonas” que, a rigor, não dizem muita coisa nem mesmo para os falantes nativos de PB. A sensibilização auditiva e a visualização das diferenças articulatórias é muito mais efetiva do que termos técnicos nesses casos todos. Assim como a observação de que uma letra anota, ou escreve, um ou mais sons. A bobagem estratosférica que as escolas teimam em repetir à exaustão, e segundo a qual as letras têm som, só dificulta o processo de aquisição da ortografia. Fica muito mais claro para os alunos se argumentamos que as letras escrevem sons e que pode acontecer de uma mesma letra anotar mais de um som. Ou de um mesmo som ser escrito por mais de uma letra.

Adendo (ou last, but not least): já ia me esquecendo de anotar que os ouvidos particularmente atentos da turma, nessa aula, fizeram com que me olhassem com cara de ponto de interrogação ao ouvirem um dos alunos de Letras pronunciar “dois”, “três”, “seis”. Por que ele pronunciava o final dessas palavras de maneira diferente? Ora de explicar que não existe pronúncia certa ou errada e que a pronúncia de uma mesma palavra pode variar em função da região do país da qual a pessoa vem. Esse meu auxiliar é carioca! Claro que eu achei o máximo os migrantes se darem conta dessa diferença. E claro, também, que eu aproveitei a deixa para dizer que o PB tem variações como as línguas de cada um deles. O aluno egípcio, mais exaltado, se convenceu com meu argumento sobre a variação regional da pronúncia de vogais numa mesma palavra do árabe. Coisas que aprendi com uma aluna síria que, há alguns anos, cursou comigo a disciplina de Fonética e Fonologia na graduação em Letras…

Adelaide Silva
22/04/2023

Leia também

A antepenúltima aula do período letivo neste 17 de junho me trouxe finalmente uma compreensão mais clara sobre como pensar uma turma de Iniciantes. Essa turma, aberta em caráter emergencial, não tinha sido prevista antes do início do período letivo, e resultou da nossa percepção – minha e dos alunos de Letras com quem atuo […]
A antepenúltima aula do período letivo neste 17 de junho me trouxe finalmente uma compreensão mais clara sobre como pensar uma turma de Iniciantes. Essa turma, aberta em caráter emergencial, não tinha sido prevista antes do início do período letivo, e resultou da nossa percepção – minha e dos alunos de Letras com quem atuo […]

Relacionadas

A antepenúltima aula do período letivo neste 17 de junho me trouxe finalmente uma compreensão mais clara sobre como pensar uma turma de Iniciantes. Essa turma, aberta em caráter emergencial, não tinha sido prevista antes do início do período letivo, e resultou da nossa percepção – minha e dos alunos de Letras com quem atuo […]

Em 2013, quando comecei a atuar no programa Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH), o perfil dos alunos era muito diferente do perfil que temos decorridos dez anos. Naquele momento, o programa atendia exclusivamente migrantes haitianos, que viam no Brasil uma alternativa ao país e à própria vida, devastados pelo terremoto, pela miséria, por um […]

Ontem foi o primeiro sábado em que passei a tutora apenas da turma de Iniciantes. A turma do Básico 1, de agora em diante, passa à tutoria de uma colega engajada no PBMIH. Dessa forma, passo a ter contato exclusivo com essa turma, durante todo o período da aula. Quando propusemos essa turma, criada a […]